Estamos próximos do fim dos apps?
Empresas devem passar a desenvolver aplicativos que atendam mais às demandas de agentes de inteligência artificial do que às nossas
A inteligência artificial (IA) tem criado novas formas da gente interagir com o mundo, principalmente no digital, e todas essas mudanças podem transformar radicalmente a forma como usamos o dispositivo que se tornou básico na nossa vida: os celulares.
Não há dúvida que os aplicativos móveis, esses que usamos no nosso smartphone e também em tablets, deram origem a uma nova geração de startups e soluções que moldam nossas vidas digitais. Cada um deles passou a desempenhar um papel na nossa vida, e hoje temos aplicativos para tudo.
Chega até a ser difícil lembrar de como era a mobilidade urbana antes do Uber ou do 99. Pedir comida era sempre uma aventura. Monitorar a saúde, então, era só pra quem estava disposto a desembolsar boas quantias mensais.
Isso sem falar no entretenimento de todos os tipos, fazendo com que, hoje em dia, usar a internet se tornasse sinônimo de entrar nas redes sociais, que construíram verdadeiros impérios em torno dos nossos dados. Mas será que a IA pode mudar esse cenário e tornar os aplicativos obsoletos?
Eu era jovem quando Steve Jobs, ou melhor, a Apple, lançou o iPhone, em junho de 2007. Foi um verdadeiro frenesi e pela primeira vez eu vislumbrei uma real possibilidade de ubiquidade. Esse dispositivo móvel iria substituir os antigos celulares que tinham uma limitação de uso, basicamente telefonar e enviar SMS.
Um ano depois, foi lançada a App Store. Desde então, uma revolução nos aplicativos móveis criou indústrias inteiras de 2008 até hoje, transformando os smartphones em itens essenciais. O desenvolvimento de aplicativos se tornou um business para muitos jovens, e Apple e Google lucraram bastante em cima deles.
Mas essa realidade de, em um único dispositivo, fazer transferências bancárias, alugar uma casa, pedir um motorista, fazer compras no supermercado e conhecer um novo amor, pode estar prestes a mudar, e todas essas interfaces visuais podem desaparecer.
Assistentes Virtuais
Hoje, o grande esforço entre as principais empresas que estão desenvolvendo grandes modelos de linguagem, os chamados LLMs, tem como grande objetivo automatizar o maior número de tarefas, não apenas as criativas.
A ideia principal é o desenvolvimento de agentes autônomos ou assistentes virtuais turbinadas que são capazes de executar todo tipo de tarefa que pode ser virtualizada a partir de um comando nosso, ou um prompt.
Você pode me dizer que já existem assistentes virtuais que fazem coisas por nós, como a Siri e a Alexa, mas as tarefas que estou me referindo são bem mais complexas. Eu falei um pouco sobre isso neste outro texto, que focava em alguns dispositivos que pretendiam realizar isso (pretendiam, porque ainda não chegaram lá).
Mas vamos imaginar que você queira viajar para Paris e ver as Olimpíadas que começam logo mais. Hoje, apesar de você poder pedir para alguns modelos indicações de passagens baratas, hotéis, restaurantes e roteiros, você ainda terá que fazer uma parte bem chata, que é comprar e agendar tudo.
Mas, com um agente de IA, você pode simplesmente solicitar que ele faça tudo, ou seja, a compra do voo mais barato, já que ele tem todas as suas informações, inclusive de pagamento, reservar os hotéis e restaurantes, enviar mensagens e convites para seus dois amigos que moram em Paris, comprar ingressos para todos os jogos de futebol do Brasil, organizar passeios em algumas cidades próximas e comprar a camiseta oficial das Olimpíadas, que deve ser entregue no dia que você chega em Paris, no endereço do hotel.
Ufa! E tudo isso porque você simplesmente falou o que queria e não precisou tocar na tela em nenhum momento.
O fim dos aplicativos
Mas tá, por que isso acabaria com os aplicativos? Bem, em um primeiro momento, esses agentes podem interagir virtualmente através das interfaces e apps criados para nós, humanos. Ou seja, ele pode usar seu app de compra de passagens por você.
Mas, à medida que todo mundo passar a usar esses agentes, a preocupação com a interface gráfica dos apps e toda a experiência de usuário (UX) pode não fazer sentido. Pode até ser que as aplicações ainda existam, mas certamente não da forma como nós as conhecemos, já que as empresas vão passar a desenvolver aplicativos que atendam mais às demandas dos agentes do que às nossas e, com o tempo, com iteração suficiente, os aplicativos móveis podem, sim, se tornar obsoletos.
Esse ano tem sido um ponto de inflexão nesse sentido. No início do ano, Timotheus Höttges, CEO da Deutsche Telekom (DT), deu uma palestra na MWC24 que foi reveladora e sedimentou o que muitas pessoas da tecnologia já estavam prevendo, desde o anúncio de alguns wearable de IA sem tela, como o AI Pin e o Rabbit R1, que tentaram reimaginar um futuro com agente de IA usando esses aplicativos, gratuitamente.
Eles usam o chamado LAM (Large Action Models), que são esses grandes modelos de linguagem, pois entendem a linguagem humana através de prompts, mas também são capazes de executar ações. A própria DT está desenvolvendo um conceito de AI Phone, o “T-phone”, que usa um concierge de IA como interface.
Apesar de conceitos e produtos que não fazem o que vendem, como já expliquei, trazem uma visão de interação muito mais fluida e que pode libertar nossos olhos das telas. Além disso, eles servem como modelos para funcionalidades que estão sendo incorporadas aos smartphones dos grandes players do mercado.
Outro fator que me faz pensar nessa possibilidade é que o modelo da App Store, principalmente, é terrível para muitos desenvolvedores, já que fica com boa parte dos valores comercializados na venda de aplicativos e assinaturas. A possível independência dessas lojas de app pode ser um combustível importante nessa mudança.
A hiperpersonalização e novas formas de interação
Claro que existem muitos especialistas que não corroboram com essa ideia, pois acreditam que os aplicativos mais utilizados são para entretenimento, ou seja, redes sociais. Mas será que, diante de tantas redes que utilizamos no dia a dia, muitas delas porque se tornaram trabalho de muitos, não seria interessante um agregador?
Muita gente faz uso de alguns agregadores, mas a interação com as diferentes redes sociais e perfis ainda não é das melhores. Agora, imaginem esses agentes configurando o uso desses apps para que tenhamos uma experiência integrada, apesar da utilização de várias redes sociais diferentes.
Por exemplo, vamos nos focar em vídeos curtos, com o TikTok, Instagram Reels, Shorts do YouTube e o Spotlight do Snapchat. Todos eles usam vídeo na vertical, têm layout semelhante e utilizam um algoritmo que maximiza a retenção do usuário. Um agente de IA poderia agregar o melhor conteúdo de todos os apps e nos entregar da forma como desejamos.
Pode ser um compilado desses vídeos, dos temas que queremos, sem ter que ficar abrindo e fechando diferentes apps. Ele poderia criar um feed personalizado e adaptado aos seus interesses naquele momento. É só pedir.
Isso não é tão simples e, por isso, esses agregadores não conseguem fazer isso bem a ponto de todo mundo usar. Essa nova forma de interagir com conteúdos exigiria uma reengenharia de todo o sistema e transformaria o mercado Afinal, como gerar valor com tudo isso?
Dá pra imaginar muitas formas como tudo isso pode acontecer, uma vez que não serão mais as pessoas que vão consumir esses conteúdos e interagir com eles nas plataformas, como curtir, compartilhar e etc. Mas um novo ecossistema pode surgir e a economia da atenção pode mudar.
Não sei dizer se isso poderia ser bom ou melhor para as empresas, mas, para nós, consumidores e usuários, certamente, pois romperemos as fronteiras entre as redes sociais e poderíamos criar outras formas de consumir online.
Real-time web e novos dispositivos
Já faz um tempo que tenho usado pouco o celular, e consequentemente as redes sociais. Geralmente, saio de casa apenas com o meu smartwatch, que tem um eSim (chip virtual) e, com ele, posso fazer ligações, responder pelo Whatsapp, ouvir música, fazer pagamentos, enfim, o básico.
Só sinto falta de tirar fotos, o que será suprida, em breve, quando eu comprar meus óculos inteligentes e com IA. E querem saber? Estou achando uma maravilha!
Isso já dá um gostinho do que podem vir a ser nossos novos dispositivos móveis e vestíveis, que vão nos permitir usar a computação, IA e a internet com diferentes interfaces. Vai mudar nossa interação com o mundo, e a interação com as máquinas também, e delas com o mundo.
Isso tem sido chamado de “real-time web”, em que a nossa fruição online será sem barreiras. A internet não será mais sobre sites e aplicativos, mas, sim, sobre o que queremos, sobre a nossa imaginação.
Hoje, podemos gerar um romance com um prompt, mas também podemos fazer isso com código. Isso significa que, quanto mais essas IAs generativas (GenAI) melhorarem, seremos capazes de gerar software em tempo real (isso já está acontecendo na verdade).
A “internet em tempo real” poderia ser definida como uma experiência de software hiperpersonalizada, de acordo com qualquer solicitação que você fornecer. A GenAI vai poder desenvolver aplicativos especialmente para nós, que podem ser melhorados continuamente ou desaparecer quando não fizer sentido, sem ocupar memória.
A maneira como pensamos e usamos a internet vem mudando ao longo do tempo. Muito se fala em Web3 e a próxima fronteira da internet, que será descentralizada e espacializada (cada site como um mundo virtual, por exemplo). Mas aqui eu gostaria de focar em outro ponto.
Quando falei das mudanças na forma da gente fazer pesquisa, com o uso da IA, também abordei o quanto a IA irá personalizar todas as nossas experiências online. Os sites, em breve, além de tridimensionais, terão conteúdo dinâmico, e eu e você teremos homepages completamente diferentes da mesma URL.
Mais do que uma organização de conteúdos, os próprios conteúdos poderão ser gerados especificamente para cada usuário, e tudo em tempo real, claro! É quase como se o que acessamos não existisse antes de nós olharmos para ele (Schrödinger feelings).
Por isso, muitos especialistas têm chamado essa internet reconfigurada por IA de internet quântica, que tem outras várias características, além das informações que vemos na internet serem dinâmicas e personalizadas.
Esta é uma mudança fundamental na forma como interagimos com a tecnologia e que pode ser tão importante como as capacidades da própria tecnologia. Quem chegou a usar computador sem sistema operacional intuitivo, e sem mouse, sabe do que estou falando.
Eu cheguei a apagar documentos importantes do meu pai quando usava o computador dele, tudo através do DOS. Era digitar o comando errado e já era. Quando comecei a usar o Windows, que tem uma interface que protege, digamos assim, as coisas importantes, e que também tem uma interface gráfica amigável, tudo mudou. O mouse então, nem se fala. Foi a coisa mais incrível.
Por isso, sempre digo que o design de interface é capaz de revelar o valor que uma tecnologia tem para o usuário, além de protegê-los de erros bobos, como os que eu cheguei a fazer. A criação das “pastas”, que funcionam como as pastas que tínhamos nos escritório, além das janelas, tudo isso é encantador.
Não quero que isso pareça um conto de ficção científica, porque não é exatamente ficção. Mas quando os robôs, os hardwares, passarem a evoluir rapidamente, todo esse desejo de ações que estamos prestes a fazer no virtual, poderá ser executado no mundo físico.
Assim como a metáfora do mouse, pastas, janelas e etc. mudaram radicalmente a forma como interagimos com o computador e eliminaram o atrito entre o usuário e a máquina, a metáfora dos agentes de IA está prestes a eliminar o nosso atrito com as telas e talvez aumentando o atrito com o nosso corpo, através dos mais diversos wearables.
Essa fruição do virtual ao físico nos permitirá trazer objetos virtuais para o mundo físico, não só como acontece com a realidade aumentada (RA), mas também se tornando físicos, assim como o ambiente físico vai se tornar imersivo em tempo real.
Isso irá criar novos léxicos, um novo vocabulário, que será multimodal, como observar aquilo, colocar ali, fechar isso, usando gestos, contato visual, voz e também superfícies de controle e interfaces táteis.
Se em breve poderemos conversar com nossos agentes, assim como Theodore conversa com Samantha, no filme “Ela”, e pedir para eles executarem as mais diferentes tarefas por nós, em um futuro não muito distante, poderemos executar tarefas no mundo físico.
A computação será mais centrada no ser humano, e os computadores tendem a ter uma percepção mais ampliada que a nossa biologia. Isso não significa que serão melhores, mas, sim, diferentes.
Romper a barreira entre os aplicativos, ou até mesmo extingui-los, pode trazer uma reconfiguração da interação muito diferente da que estamos acostumados. Como sempre, nos resta saber até que ponto queremos que as IAs controlem tudo, podendo, inclusive, emular realidades.
O que parecia ficção científica há pouco tempo (“Ela” é de 2013), logo mais será comum. Só espero que o mesmo não aconteça com a Skynet e, para isso, o que é vivo deve permanecer no comando.